Em entrevista, relator da ONU para direito à educação aponta crise na educação relacionada com exclusão e crise do modelo Estado-Nação
01/09/2009
Cristiano Navarro
da Reportagem
A lógica da exclusão educacional segue a mesma lógica histórica da exclusão econômica. O que parece óbvio neste diagnóstico, não o é em sua solução para os problemas encontrados na educação tradicional.
Por exemplo, o que muitos consideram como um debate polêmico, para o relator especial da Organização das Nações Unidas (ONU) pelo direito à educação, o costariquenho Vernor Muñoz Villalobos, trata-se de um debate “inútil”. Em suas andanças pelos cinco continentes, Villalobos constatou que as políticas afirmativas são medidas eficientes contra as diferenças. “Não entendo muito bem por que se produz este debate se há provas que sim funcionam os sistemas de cotas”, argumenta o relator citando a cota para mulheres como exemplo fundamental para o equilíbrio de gêneros na participação política.
A crise do modelo econômico global reflete na incapacidade de dar acesso à educação escolar. Hoje, em todo mundo, cerca de 100 milhões de crianças e quase 800 milhões de jovens e adultos estão fora do sistema educacional. “O sistema educativo tradicional, parte da afirmação da superioridade de certos grupos”, avalia Villalobos.
Coletando informações desde 2004 no posto de Relator Especial da ONU, Villalobos produziu relatórios anuais sobre o direito à educação das pessoas privadas de liberdade (2009); o direito à educação em situações de emergência (2008); o direito à educação de pessoas com deficiência (2007); e o direito à educação das meninas (2006) verificando semelhanças nos grupos sociais descriminados.
Sem respostas aos dilemas humanos de suas sociedades, os Estados-Nação se deparam também com uma forte crise de seus modelos educacionais. “O sistema educativo é filho dos estados nacionais e, no momento histórico em que os estados nacionais entram em crise, entra em crise também o sistema educativo”, confirma Villalobos .
Quais são os grupos mais discriminados ao Direito a Educação? Existe alguma característica comum?
Sim, este é uma resposta um pouco retórica. Tratam-se dos grupos que são históricamente excluídos das oportunidades sociais e econômicas em geral. O sistema educativo tradicional, parte da afirmação da superioridade de certos grupos. Com a emergência dos direitos humanos este esquema começa desmoronar-se. No entanto, a herança que recebemos do estado da modernidade e de sistema educativo baseado em uma racionalidade utilitarista segue causando discriminação contra os povos indígenas, contra meninas, adolescente e mulheres, contra pessoas com deficiência física e contra as minorias étnicas e culturais. Se tivermos que definir as características os grupos discriminados são amplas. E no caso específico do Brasil, pessoas com deficiência física, a população negra, indígena e, também, meninas adolescentes, seguem sendo os grupos humanos discriminados das oportunidades educativas, e portanto são os pobres. Os pobres em setores rurais e camponeses seguem sendo vítimas de um sistema educativo discriminador e excludente.
Pode fazer uma comparação da situação do Brasil com a América Latina?
Bem as comparações não funcionam, porque pode ser que alguns países tenham indicadores globais muito bons, mas pode ter certos setores de sua população em muito má situação. Eu poderia te dizer que globalmente a escolarização no mundo aumentou nos últimos sete anos de 1,5% a 1,75%, mas isso pode não querer dizer nada na medida em que sabemos que os grupos que foram discriminados através dos tempos seguem estando discriminados igual ou pior a antes. Pode ser que um país tenha melhorado seus indicadores brutos de escolarização, mas isso não significa que as pessoas mais empobrecidas, que as pessoas mais discriminadas, tenham maiores oportunidades educativas. Por isso que eu me recuso muito a fazer essas comparações
Pode se dizer que por isto a ONU tem a opção de trabalhar com temas e não por regiões?
Exatamente, porque inclusive no primeiro mundo encontramos populações discriminadas. Exemplo, se vamos examinar uma situação de um país como a Alemanha vamos observar que as populações de imigrantes turcos seguem sendo excluídas e segregadas. Então, mesmo no chamado primeiro mundo há problemas. Há países europeus que têm de um a um milhão e meio ou dois milhões de pobres, excluídos, e mesmo assim têm indicadores econômicos extraordinários. Por isso temos que ter atenção não ao Esados, mas as pessoas que estão excluídas.
No Brasil há um intenso debate sobre as políticas de cotas. Quais são os efeitos das políticas afirmativas no sistema de educação?
Me parece que este é um debate inútil. A prova mais eficiente e contundente é a de reivindicação dos direitos das mulheres. O sistema de cotas para participação política das mulheres funcionou extremante bem para maior participação feminina. E se aprendemos com a história, podemos aprender também que desenvolver ações afirmativas para população afrodescente e para os povos indígenas, não somente vai dar mais oportunidades a estas pessoas como também contribui para dignificar a vida em geral e o direito de todas as pessoas. Assim, não entendo muito bem porque se produz este debate se há provas que, sim, funcionam os sistemas de cotas.
Há países que você pode nos apontar que depois implantação do sistema de cotas houve um desenvolvimento no direito ao acesso a educação?
Claro, um exemplo que neste momento me vem à mente é a Malásia. Malásia teve uma população étnica grande e majoritária discriminada, o povo Bumiputera. A esta população se instalou um sistema de ações afirmativas e, neste momento, é a população de maior poder político e social. E há muitos outros exemplos. No caso das mulheres há incontáveis exemplos de que o sistema de cotas tem funcionado. Mesmo no meu país, Costa Rica. Creio que esta é uma discussão que deve ser superada em curto prazo.
Os Estados recorrentemente usam o lema “educação para todos”, mas os mesmos Estados têm respeito ou sabem o que significa “para todos” em suas diferenças culturais?
Creio que não pode haver educação para todos se não se respeitam as particularidades culturais. Uma pessoa que recebe uma educação diferente da sua. Uma pessoa que receba uma educação onde agrida ou se invisibilize a sua cultura é uma pessoa que está condenada a exclusão cedo ou tarde. Então, na medida que não se respeitem e garantam sua língua, sua cultura, sua cosmovisão, nessa mesma medida não se poderá garantir a permanência e o êxito escolar. A base de uma educação para todos é o reconhecimento a diversidade cultural e o estabelecimento de sistemas educativos que garantam o respeito a esta diversidade. Se não, será impossível que o Brasil, ou qualquer outro país, consigam a universalização da educação.
Há alguns exemplos de Estados que respeitam a diversidade cultural e a autonomia educacional dos povos?
Há experiências em todo mundo. No Canadá seguem desenvolvendo experiências interessantes dos povos indígenas. Na Nicarágua há um sistema interculutral bilíngue. Sim, temos observados boas práticas que, para serem generalizadas, precisam de recursos para que funcionem. Sistemas educativos que correspondam às necessidades dos estudantes. Se este sistema parte desses processos de adequação curricular e não se dota de recursos suficientes, estes processos não vão funcionar.
Fala-se muito sobre uma crise da educação formal. O senhor acredita que a escola hoje está direcionada para responder aos dilemas econômicos, sociais e culturais que enfrentam as sociedades?
A educação formal esta em crise total. A educação existe de tempos imemoriais. Mas educação como sistema surge no mesmo momento em que aparecem o sistema penitenciário, as fábricas, os hospitais psiquiátricos. É dizer, as escolas foram pensadas como uma forma para disciplinar a mão-de-obra para o mercado. Assim foi como se pensou a escola. Claro! Quando aparecem os direitos humanos este sistema educativo entra em crise. Porque os direitos humanos dizem à educação que seu objetivo não é formar mão-de-obra. O objetivo é construir conhecimento para dignificar a vida. Então neste momento temos um sistema educativo gerado da modernidade com propósitos diferentes que assinam os direitos humanos. Então este modelo educativo já não pode responder as necessidades de dignificar os seres humanos, por que foi pensado para outro fim. Coloco como exemplo: se estamos dizendo que as pessoas com deficiência física têm direito a assistir à mesma escola que as outras pessoas sem deficiência física isso não se pode conseguir com o modelo educativo que se tem atualmente. Teremos que pensar em outro sistema educativo. Se dizemos que devemos preparar os estudantes para viver em democracia e liberdade isso não se pode conseguir se seguimos mantendo um sistema educativo baseado nas assimetrias entre professores e estudantes. Não podemos ensinar a viver em liberdade mediante um processo de aprendizagem que está fixado para fins opostos. Então creio que o modelo deve mudar. Não me pergunte como. Este é um tema da pedagogia e dos teóricos da educação, mas o que posso te dizer é que este sistema educativo tal como está pensado não pode ser um aporte significativo para vivência total dos direitos humanos.
Pode-se dizer que o sistema educacional segue as demais crises econômicas e sociais?
O sistema educativo é filho dos estados nacionais e no momento histórico em que os estados nacionais entram em crise, entra em crise também o sistema educativo. Assim que acredito que temos uma grande oportunidade de mudar este sistema. Como dizem no meu país: o bonito disto é o feio que está sendo colocado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário