Principal
nome do documentário nacional, Eduardo Coutinho foi assassinado a facadas pelo próprio filho aos 80 anos na última
segunda-feira (2), no Rio de Janeiro. Daniel Coutinho, filho do cineasta, sofria de esquizofrenia e
esfaqueou o pai e mãe após uma discussão e então, segundo a polícia, tentou se
matar.
Diretor
de clássicos como Cabra
Marcado Para Morrer e Edifício Master, Coutinho tinha sérios problemas de saúde nos últimos
tempos por causa do cigarro, um vício que não conseguia abandonar. Ele, no
entanto, pretendia continuar dirigindo mesmo assim. “Estou preparado para filmar com cadeira de rodas. O Michelangelo
Antonioni filmou e o Bernardo Bertolucci faz até hoje. Se precisar filmo até cego, com uma pessoa ao
meu lado falando o que está acontecendo. Só acho mais complicado filmar surdo”,
confessou em entrevista recente ao site "AdoroCinema" à
época do lançamento de As Canções, um dos seus últimos trabalhos.
O
enterro do cineasta aconteceu na segunda-feira (3) na Capela do Cemitério São
João Batista, em Botafogo, com a presença de amigos e familiares.
Um amigo e colega de trabalho de Búzios
Por Victor Viana
O
Jornalista Raul Sivestre, morador de Búzios, trabalhou por oito anos ao lado de
Coutinho no Globo Repórter durante a década de 70, "ele entrou no Globo Repórter um ano antes de mim e
ficava muito solto, tinha muita liberdade lá. Coutinho era de cinema, mas sabia
encostar-se às pessoas certas, então ficou muito próximo do pessoal da TV e
pegou rápido o traquejo. Entre tantas coisas que fizemos juntos posso citar o 'Menino de Brodósqui' sobre o Portinari",
relatou.
Raul contou
que no plano pessoal Coutinho era reservado, “hoje entendemos que poderia ser em função da doença do filho. No Globo
Repórter éramos entre 20 a 30 pessoas e todo mundo conhecia os filhos e as
mulheres um dos outros. O Coutinho ninguém via a família, e ele morava há cinco
quarteirões da redação", contou, mas ponderou que no ambiente de trabalho
era diferente: "Ele tinha um ritual que era chegar de manhã (estava nesse
horário sempre mal humorado) e ia para sua mesa que ficava no canto da redação
e lia o JB e fumava uns 28 cigarros, sendo que destes de verdade fumava apenas
cinco, o restante ele deixava queimando no cinzeiro. Mas no restante do dia ele
se transformava: era brincalhão e um amigo bem próximo de todos".
Sobre o tão conhecido vicio
do cigarro, Raul conta que Coutinho era o único que fumava nas ilhas de edição
do Globo repórter, "fumar era explicitamente proibido naquele ambiente,
mas ele fumava e quando alguém tentava dizer a ele que prejudicava a saúde
respondia: 'vou morrer como todos vocês também irão', lembra.
Coutinho era de São Paulo,
mas estava, por força dos muitos anos morando no Rio, adaptado a vida carioca.
Mas algo do caráter paulista permanecia nele. Segundo colegas de trabalho ele
era metódico e muito sério no momento do trabalho, “chegava a ser chato".
Algo inerente ao oficio
Algo do qual se falou em
quase todas as entrevistas com amigos e admiradores de Coutinho foi sobre uma
suposta qualidade em criar uma espécie de intimidade com o entrevistado o que
levou o amigo Raul Silvestre a comentar: "Se está falando muito sobre isso
de que ele sabia criar uma intimidade com o entrevistado, mas isso é dito por
quem não entende do métier. É inerente ao
ato de entrevistar, em especial para TV e cinema, que se crie uma intimidade
entre o entrevistador e o entrevistado. Disso depende a qualidade da
entrevista. A grande qualidade do Coutinho era a compreensão bem clara que
tinha sobre o que chamamos de 'ideologia da imagem'. Cada Plano tem uma ideologia.
Em uma entrevista com Ariano Suassuna usa câmera fixa, assim como usaria em uma
filmagem oficial da presidente ou mesmo de uma paisagem. Mas em documentários
como o Edifício Máster e outros a câmera está em movimento na mão do
cinegrafista porque o valor intrínseco da imagem é mais importante que algum
padrão holiudiano. Isso passa a credibilidade da matéria. Além é claro do
ineditismo de muito de seus trabalhos: foi quem pela primeira vez no Brasil fez
um documentário sem texto, só com depoimentos".
Outras
duas características marcaram a trajetória de Coutinho; o seu descomprometimento
político, mesmo tendo trabalhado na Globo no período do regime militar. E a sua
marca de sempre procurar de alguma aparecer nos filmes e reportagens, o que não
é comum em jornalismo e filmes documentais. “Intelectualmente era
vaidoso", finalizou Raul.
Um cabra marcado para ficar na história
Entre
os admiradores de Coutinho está o ator Mario José Paz, também proprietário do Gran
Cine Bardot, "acho que sem dúvida, repetindo o que está sendo dito por
todos, e com razão, perdemos um dos maiores documentaristas do Brasil e do
mundo. Coutinho tinha uma visão particular do seu trabalho. Em minha opinião a
sua maior característica era o dom de deixar o entrevistado a vontade, criava uma
intimidade entre ele e o entrevistado. Criava-se mesmo uma harmonia dificilmente
vista", afirmou por telefone. Mario José ainda contou um fato que o marcou
da última vez que esteve pessoalmente com Coutinho: “Encontramos com ele em um
bar no Jardim Botânico, estávamos eu e a Vilma, minha esposa, e perguntamos a
ele quando nos veríamos de novo e ele respondeu: 'terá de ser esse ano, porquê
acho que é o meu último vivo'. Ficamos espantados com aquela resposta, mas ele
realmente era um fumante inveterado e além disso tinha com certeza uma espécie
de clarividência, visto a genialidade de sua obra".
O
cineasta Milton Alencar, que mora em Cabo Frio, também lamentou a morte de
Coutinho e assumiu ser influenciado por seu trabalho, "Ele foi o precursor de uma categoria
cinematográfica, no documentário principalmente, diferente dos outros cineastas
do Brasil de hoje. Sem dúvida foi o mais importante dos documentaristas do
Brasil nas últimas décadas, era fantástico. Ele estava um cineasta muito
requisitado nos últimos tempos. Sempre que eu ia aos festivais e o via estava
sempre tendo contato com as pessoas, respondendo perguntas e explicando seu
trabalho com muita atenção. Ele inaugurou uma escola de
documentaristas, ele vai deixar uma herança. Muitas das minhas coisas são feitas
a luz do Eduardo Coutinho. Uma pena que tenha terminado sua vida desta
maneira".
Coutinho por ele mesmo
Eduardo
Coutinho foi o principal homenageado da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
em 2013. Em uma das muitas entrevistas (a reproduzida aqui durante a Flip) que
deu falou sobre a arte de fazer perguntas, algo fundamental há um jornalista e
documentarista, e também sobre a vida e a morte:
Da arte de fazer perguntas
“O essencial é estar vazio diante do outros, vazio
do ponto de vista ideológico, Se colocar entre parênteses, estar vazio mesmo, evitar
fazer juízo. Vazio para que possa receber do outro o que ele tem a dar e a
dizer, sem que ele seja julgado. Para que ele, o entrevistado, seja legitimado
e justificado. Ele não deve saber nunca o que espero dele. Não quero você de
esquerda ou direita, bom ou mal. Quero você. Entrevistei uma mulher onde
perguntei a ela sobre a pobreza no
Brasil e ela fez um discurso extraordinário contra os pobres. Eu tentei
argumentar com ela, como não teve jeito deixei ela falar e ela fez um discurso
veemente contra os pobres, que eu não concordo, mas expos o que pensava e
ofereceu um vasto conteúdo ao filme. Outro foi no sertão, onde invés de eu
perguntar a pessoa me perguntou se eu acreditava em Deus e em vida após a morte.
Então eu não disse que não, porque se não a conversa acabaria ali. Então eu fui
levando e dizendo que não sabia. Fui dizendo que gostaria de acreditar... e assim deixei que
ele passasse a falar. Isso é importante
(Mesmo que não acredite é preciso não dizer para não estancar a
conversa). É uma questão de como se fala
mais do que o que se fala. Quisera eu
acreditar em um deus, em outra vida... eu gostaria de acreditar”.
A linguagem ontem e hoje
"Estou interessado no momento por isso,
como as pessoas usam as palavras, lugares comuns e as expressões. "Minha
vida é boa", "Minha família é boa", “Quero estudar”. Por quê? Quero
perguntar para as pessoas, por que trabalhar? Para que levantar de manhã? Essas
são questões que me interessam e isso uma criança de quatro anos faz. Minha vontade
era fazer um filme que uma criança de quatro anos faria. E a morte? Ninguém se
pergunta... o que é viver? Questões básicas da vida que ninguém pergunta. Pra
que serve dinheiro? Trabalhar pra que? Pra ganhar dinheiro? E para que serve o
dinheiro? É certo algumas pessoas terem mais e outras menos dinheiro? As perguntas mais básicas sempre
são as mais interessantes".
A
origem e autoria das conversas
"Nas filmagens
a conversa é essencial. A palavra do outro passa a ser sua e a sua do outro. Há
uma coprodução da fala".
O que faz um bom filme e a inexistência da
verdade
"Não adianta
nada ter um tema maravilhoso e ser um filme ruim. Bom é o filme que faz
perguntas, o filme que dá respostas pode jogar no lixo que ninguém suporta. Nem
o mais sábio da academia, nem o militante mia fervoroso sabe a verdade de nada".
Sobre a vida e a morte
"A vida é
assim, você nasce e morre, é isso. O que se faz entre nascer e morrer? Você
vive! Eu não acho que a vida foi bem vivida. Não tenho nostalgia nenhuma e
acabou! O que é bem vivida? O médico me perguntou isso uma vez e eu pensei que
estava com câncer, mas não era. Nunca eu poderia dizer isso: 'Ah tive uma vida bem
vivida'. Esse médico era um filho da puta. Eu pelado e ele me perguntou se eu
tive uma vida bem vivida? Eu poderia ter dito a ele que perguntasse a mãe dele.
Mas eu não disse, nunca disse as coisas na hora".
Matéria publicada originalmente em O Perú Molhado www.operumolhado.com.br
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